8 de março de 2010

"Ser que nunca fui"



Começo a chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem ter nunca partido
para o norte aceso
no arremesso da esperança

Nessas noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais

Faltou-me viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava

Houve lágrimas que não matei
porque me fiz
de gestos que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente

(Mia Couto - in 'Raiz de Orvalho e outros poemas')

7 de março de 2010

há um cais?



Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar

Há uma luz no túnel dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar

Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar

E são tantas marcas que já fazem parte
Do que eu sou agora
Mas ainda sei me virar

Eu tô na lanterna...
tô te esperando...
vai demorar (?)

("Lanterna dos Afogados" - Herbert Viana)